A condição do indivíduo na era do Big Data e da Inteligência Artificial e o retorno do estoicismo
Como o estoicismo pode ajudar as pessoas a lidar com os efeitos das tecnologias do nosso tempo
O estoicismo voltou a ser discutido, tornou-se até mesmo pop. Desde Montaigne, no século XVI, essa filosofia não ganhava tanta atenção como hoje. Nos últimos anos, referências ao estoicismo na internet aumentaram muito.
Ryan Holiday, autor de vários best sellers sobre princípios do estoicismo, criou um negócio de sucesso a partir dessa filosofia. Eu mesmo gosto muito de ler seus e-mails diários sobre o tema.
Por que o retorno do estoicismo hoje?
Penso que isso acontece por estarmos diante da filosofia que talvez seja a mais adequada para as pessoas que vivem na era das tecnologias de informação e comunicação (TICs), do big data e da IA.
Não é à toa que nossa época trouxe, por exemplo, o conceito de sobrecarga digital (digital overload). O estoicismo parece ajudar a lidar com coisas assim.
Vejamos o diagnóstico preciso de Naval Ravikant, um sábio da nossa época, sobre o momento que o indivíduo enfrenta atualmente:
“A luta Moderna é realmente sobre indivíduos – desconectados de sua tribo, religião e redes culturais – que estão tentando enfrentar todos esses vícios que foram transformados em armas: álcool, drogas, pornografia, alimentos processados, mídia de notícias, internet, redes sociais e videogames”.
O aumento do interesse pelas lições dos estoicos aconteceu também comigo. Tenho usado algumas estratégias estoicas como manter um diário, cuidar da própria rotina e estabelecer momentos de quietude (stillness), que me tem ajudado a enfrentar esse mundo de correria, de notificações e de informação massiva o tempo todo.
A tecnologia que temos hoje, como os e-mails e o Whatsapp, elimina o limite entre o trabalho e o ambiente doméstico, fazendo com que o trabalho acabe nos acompanhando em todos os lugares, o que causa, é claro, estresse.
O psicólogo Guy Winch diz que o interessante sobre o estresse do trabalho é que nós não sentimos muito quando estamos no escritório, porque estamos muito ocupados, mas experimentamos esse estresse fora dele, quando estamos em casa.
Isso acontece porque a tecnologia tornou possível uma ruminação constante sobre o trabalho. Isso é o maior obstáculo para conseguirmos descansar de verdade.
Assim, afirma Winch, se falta um limite físico entre o trabalho e a casa, precisamos criar um limite psicológico entre eles, o que envolve, por exemplo, estabelecer um horário para parar, estabelecer um “ritual” para se desligar do trabalho se você trabalha em casa, ou estabelecer um horário na agenda para lidar com aquela questão de trabalho que não te deixa relaxar.
O que é o estoicismo
Zenão de Cítio fundou o estoicismo no século III a.c. Segundo a tradição, ele era um comerciante que se voltou para a filosofia depois de perder todas as suas mercadorias num naufrágio.
Reale e Antiseri explicam que, como Zenão não era cidadão ateniense, ele não tinha o direito de adquirir um prédio para dar suas aulas. Por isso, lecionava num pórtico (em grego stoá). Assim, seus seguidores passaram a ser chamados de “os da stoá”, “os do pórtico” ou simplesmente “estóicos”.
Mas a vertente do estoicismo que se tornou mais relevante nos séculos posteriores e passa atualmente por uma redescoberta é o estoicismo romano. Ele se caracteriza por um interesse predominante pela ética.
Reale e Antiseri dizem o seguinte sobre a condição do indivíduo na época em que o estoicismo floresceu em Roma.
“Com seus laços com o Estado e a sociedade notavelmente reduzidos, o indivíduo passou a buscar sua própria perfeição na interioridade da consciência, criando assim clima intimista que nunca havia sido encontrado até então na filosofia, pelo menos nessa medida”.
As pessoas da atualidade parecem estar numa situação semelhante? Eu diria que sim.
O que o estoicismo tem a oferecer
Os filósofos mais relevantes do estoicismo produzido em Roma foram Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.
Vejamos algumas de suas lições.
Sêneca
“Sofremos com mais frequência na imaginação do que na realidade”.
“Infeliz é o espírito ansioso pelo futuro”.
As observações de Sêneca são importantes para as pessoas que lidam com a ansiedade, esse mal que caracteriza nossa época mais do que as anteriores.
Epicteto
“Você se torna aquilo a que dá sua atenção ... se você mesmo não escolher a quais pensamentos e imagens você se expõe, outra pessoa o fará, e seus motivos podem não ser os mais elevados”.
“A principal tarefa na vida é simplesmente esta: identificar e separar os assuntos para que eu possa dizer claramente a mim mesmo quais são os externos, que não estão sob o meu controle, e quais têm a ver com as escolhas que realmente controlo”.
Essas lições de Epicteto são fundamentais numa época em que recebemos informação em abundância todos os dias. A pessoa precisa aprender a distinguir o que está e o que não está sob seu controle. Sem isso, nos deixamos dominar pelo constante fluxo de informações, ao invés de concentrarmos nossas energias no que conseguimos controlar.
Coisas parecidas foram ditas pelo bilionário Richard Branson: “não se torne um escravo da tecnologia, controle seu smartphone, não deixe que ele controle você”.
Marco Aurélio
“Hoje escapei da ansiedade. Ou melhor, descartei-a, porque estava dentro de mim, em minhas próprias percepções - não fora”.
Marco Aurélio, o imperador filósofo, em seu diário que ficou conhecido como Meditações, fala sobre a importância do autocontrole. Na sociedade atual, isso é ainda mais importante se quisermos colocar as informações que recebemos a serviço do nosso bem-estar.
Ryan Holiday observa que a vida é uma série de momentos. “Como passamos nossas vidas depende de como passamos nossos dias e como passamos nossos dias depende de como passamos cada momento”. O problema é que a maioria de nós está ocupada demais para perceber esses momentos. Não estamos presentes. Estamos preocupados.
As práticas recomendadas pela filosofia estoica tinham como objetivo fazer com que o indivíduo alcançasse a ataraxia, isto é, um estado de tranquilidade, de ausência de perturbação por coisas externas.
Ao valorizar a autoanálise, o controle pelo indivíduo de sua esfera própria de preocupações, que deve ser separada do mundo que não podemos controlar, o estoicismo se apresenta como uma filosofia adequada a uma época em que o indivíduo tem dificuldade de focar, de parar, de refletir sobre si, enquanto fica ao sabor dos algoritmos e da mídia.
Na medida em que estimula o indivíduo a construir esse “muro em torno de si”, o estoicismo pode nos proteger dos excessos do mundo tecnológico.