A inteligência artificial salvará o mundo? Reflexões sobre o artigo de Marc Andreessen
Dostoiévski disse que a beleza salvará o mundo. Para Marc Andreessen é a inteligência artificial que fará isto.
No início de junho um artigo sobre inteligência artificial teve grande repercussão na cena tecnológica que eu acompanho nos Estados Unidos. De lá para cá, zero repercussão no Brasil. Mas este é um artigo que merece ser examinado, pois ele traz uma visão otimista — até salvífica se formos levar a sério o título do artigo — do desenvolvimento da IA. Estou aqui para trazer a boa nova então.
Trata-se do artigo Why AI Will Save The World, de Marc Andreessen. Quem é ele? É importante saber disso para entender o que ele fala e como ele fala. Marc Andreessen é bacharel em Ciência da Computação pela Universidade de Illinois e cofundador da empresa de capital de risco Andreessen Horowitz. Ele co-criou o altamente influente navegador de internet Mosaic e co-fundou a Netscape, que mais tarde foi vendida para a AOL por US$ 4,2 bilhões. Marc faz parte do conselho das seguintes empresas: Applied Intuition, Carta, Coinbase, Dialpad, Flow, Golden, Honor, OpenGov, Samsara e Meta.
Depois de ler o artigo de Andreessen sobre IA eu reservei um tempo para ouvi-lo em podcasts e posso dizer que, além do que está descrito no parágrafo acima, ele é uma das pessoas mais inteligentes que já vi. É sempre um prazer ouvir pessoas inteligentes. É o caso desta longa entrevista de Andreessen para o excelente Lex Friedman.
Ele também deu outras duas entrevistas: aqui e aqui.
Mas vamos ao artigo propriamente dito. Vamos situá-lo dentro do que tem sido escrito em matéria de IA, a partir de uma classificação que eu tirei da minha própria cabeça. Atualmente, existem, pelo menos, três estados de espírito diferentes nos textos sobre a IA que encontramos por aí.
Os apocalípticos
Aqueles que tem dito que a IA apresenta um risco existencial para o futuro da humanidade. Yuval Harari tem se aproveitado dessa onda, frequentemente declarado bobagens a respeito da IA, mas que acabam tendo uma repercussão enorme. Sempre achei Harari um autor superestimado. Em matéria de IA, então, ele tem mostrado que, além disso, suas declarações são bastante oportunistas. Instigar nas pessoas um senso de urgência é algo que sempre dá repercussão.
Os militantes
Aqueles que veem a IA, e especialmente a ética de IA, como uma extensão de sua militância social e política. Tudo na IA é visto através dessa lente e a ética, ao invés de ser uma área do conhecimento com uma história milenar e com muitas questões intrincadas, acaba sendo apresentada de forma empobrecida como o produto da mais recente ideologia do momento e como se se tratasse simplesmente de uma questão de vontade de fazer o “bem”. Com frequência, há também muita intolerância aqui.
Os otimistas
Aqueles que consideram que a tecnologia será responsável pela redenção da humanidade. Há inclusive o termo tecno-otimismo. Quanto mais tecnologia, melhor a vida. Os problemas humanos: doenças, ineficiência econômica, acesso à informação, são resolvidos com mais tecnologia. Inclusive o problema último de qualquer ser humano — a morte — poderia ser resolvido pela tecnologia, como vemos nas iniciativas de bilionários do Vale do Silício em financiar pesquisas sobre o prolongamento da vida ou mesmo atingir de alguma maneira a imortalidade.
Onde o artigo de Andreessen se enquadra? Pelo título, certamente na terceira categoria. E onde é que eu me enquadro? Você que me lê pode julgar o espírito deste texto e de outros que eu escrevi nesta Newsletter e, se quiser, pode me dizer nos comentários ;) . Quero dizer apenas que acredito em textos que, de boa-fé, buscam a verdade com um espírito de livre exame das coisas.
Por que a IA pode melhorar tudo o que importa para nós
Mas deixe-me apresentar um ponto importante no texto de Andreessen. Segundo ele, a IA pode “melhorar tudo o que importa para nós”.
O argumento parte da importância crucial da inteligência humana, criadora de tudo que torna nosso mundo melhor do que o mundo dos nossos antepassados: ciência, tecnologia, matemática, física, química, medicina, energia, engenharia, transporte, comunicação, arte, música, cultura, filosofia, ética. Sem essa inteligência, diz Andreessen, ainda estaríamos vivendo em cabanas de barro e sobrevivendo com uma parca agricultura de subsistência.
“Em vez disso, usamos nossa inteligência para elevar nosso padrão de vida em cerca de 10.000 vezes nos últimos 4.000 anos”.
Para ficar apenas nos últimos 200 anos, apresentei neste artigo dados que mostram uma nítida melhora exponencial na vida das pessoas, explicada por fatores como aumento da riqueza — que não é fixa e pode, portanto, ser criada — e acesso a medicamentos. Isso só foi possível por conta do desenvolvimento tecnológico, resultante da inteligência humana.
E como a IA entra nesse desenvolvimento da inteligência humana? Segundo Andreessen, a IA nos oferece a oportunidade de aumentar extraordinariamente a inteligência humana, de modo a tornar todos os seus frutos — e muitos outros que temos almejado como novos medicamentos, maneiras de resolver a mudança climática e tecnologias para alcançar as estrelas — “muito, muito melhores daqui para frente”.
Na verdade, o aumento da inteligência humana pela IA já começou, pois ela já está entre nós na forma de sistemas de controle de computador de vários tipos. Os Large Language Models (LLMs) como o ChatGPT são mais um passo nesse aumento da inteligência que, daqui para frente se acelerará muito rapidamente se nós permitirmos.
E é por isto que Andreessen gasta boa parte de seu artigo fazendo uma análise crítica do debate sobre a regulação da IA e dos riscos que essa tecnologia traz. Isto, no entanto, vai ficar para um próximo artigo. Quero me concentrar aqui no que ele promete que a IA pode nos trazer de benéfico. Vamos à lista.
A nova era da IA
Para Andreessen, a IA pode inaugurar uma nova era na qual veríamos os seguintes avanços extraordinários:
Toda criança terá um tutor de IA que é infinitamente paciente, infinitamente compassivo, infinitamente informado, infinitamente útil. Este tutor estará ao lado de cada criança em todas as etapas de seu desenvolvimento, ajudando-a a maximizar seu potencial com um “amor infinito vindo da máquina” [note que as palavras são de Andreessen, não de André :) ].
Todos terão um assistente/treinador/mentor/conselheiro/terapeuta de IA que é infinitamente paciente, infinitamente compassivo, infinitamente experiente e infinitamente útil. O assistente de IA estará presente em todas as oportunidades e desafios da vida, maximizando os resultados de cada pessoa.
Todo cientista terá um assistente/colaborador/parceiro de IA que expandirá muito seu escopo de pesquisa e realização científica. Todo artista, engenheiro, empresário, médico, cuidador terá o mesmo em suas áreas de atuação.
Todos que exercem liderança sobre pessoas — CEO, funcionário do governo, presidente de ONGs, treinador esportivo, professor — terão o mesmo. Isso fará com que líderes possam tomar decisões muito melhores, beneficiando enormemente os liderados. Esse aumento de inteligência pode ser o mais importante de todos.
O crescimento da produtividade em toda a economia terá uma aceleração drástica, impulsionando o crescimento econômico, a criação de novas indústrias, a criação de novos empregos e o crescimento dos salários, resultando em uma nova era de maior prosperidade material em todo o planeta.
Avanços científicos, novas tecnologias e medicamentos se expandirão rapidamente, pois a IA nos ajuda a decodificar ainda mais as leis da natureza e usá-las para nosso benefício.
As artes criativas entrarão em uma era de ouro, à medida que artistas, músicos, escritores e cineastas — com sua inteligência criativa aumentada por IA — ganharão a capacidade de realizar suas visões muito mais rapidamente e em maior escala do que nunca.
Inclusive na guerra o uso da IA traria benefícios (é a primeira vez que encontrei uma opinião como esta), diz o autor: “eu até acho que a IA vai melhorar a guerra, quando tiver que acontecer, reduzindo drasticamente as taxas de mortalidade. Toda guerra é caracterizada por decisões terríveis tomadas sob intensa pressão e com informações extremamente limitadas por líderes humanos muito limitados. Agora, comandantes militares e líderes políticos terão conselheiros de IA que os ajudarão a tomar decisões estratégicas e táticas muito melhores, minimizando riscos, erros e derramamento de sangue desnecessário”.
Resumindo, tudo o que as pessoas fazem com sua inteligência natural hoje pode ser feito muito melhor com IA, e seremos capazes de enfrentar novos desafios impossíveis de enfrentar sem IA, desde a cura de todas as doenças até a realização de viagens interestelares.
Mas Andreessen também aponta que se subestima o potencial humanizador da IA: a) ela oferece às pessoas que carecem de habilidades técnicas, a liberdade de criar e compartilhar suas ideias artísticas; b) conversar com um amigo de IA empático realmente melhora sua capacidade de lidar com a adversidade; c) os chatbots médicos de IA já são mais empáticos do que seus equivalentes humanos (eu ri aqui).
Assim, ao invés de tornar o mundo mais cruel e mecanicista, a IA “infinitamente paciente e solidária tornará o mundo mais acolhedor e agradável”.
Por tudo isto, nosso autor afirma que
“A IA é possivelmente a coisa mais importante — e melhor — que nossa civilização já criou” e, portanto, o desenvolvimento e a proliferação da IA — “longe de ser um risco que devemos temer — é uma obrigação moral que temos para com nós mesmos, nossos filhos e nosso futuro”.
Conclusão
As previsões de Andreessen certamente impressionam e animam muita gente. Seria positivo, por exemplo, que um estudante tivesse um tutor como descrito por ele? A princípio sim, mas há em toda tecnologia uma ambiguidade que pode ser percebida imediatamente ou, então, quando é colocada em prática.
Previsões são fáceis de fazer, mas a história mostra que nem sempre elas se cumprem ou saem como se imaginou. À parte isso, muitas dessas previsões quanto ao desenvolvimento da IA são sim animadoras e, de algum modo, podem vir a se cumprir.
Mas gostaria de argumentar o seguinte. Olho para a inteligência artificial com meu background do direito e da filosofia. Passei anos estudando filosofia do direito, filosofia política, justiça, religião e direitos humanos. Digo isto apenas para embasar a seguinte afirmação:
nada é capaz de salvar o mundo.
Sempre que leio um texto de teor utópico, venha de que lado for, meu radar de desconfiança apita. Para mim, inclusive, não há explicação racional para que o nosso mundo — a humanidade, a civilização —, diante de tudo que se passou na história, continue a existir. Deste modo, nossa continuidade é questão de mistério, para alguns um acaso, para outros um milagre…
Se minha afirmação estiver parecendo cínica demais, há coisas que podem nos consolar: Dostoiévski disse que “a beleza salvará o mundo”. Esta pode ser uma saída para quem se dispor a aderir a ela, mas se encontra no terreno particular da crença.
Não creio que qualquer tecnologia seja, por si própria, uma salvação para nós. Ela certamente pode ser uma ferramenta para uma vida melhor. Mas isto deve ser visto sempre como parte do intrincado, oscilante e misterioso drama humano que se desenrola na história.
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