IA e solidão: por que buscamos companhia nas máquinas, e o que isso diz sobre nós
A ascensão dos companheiros virtuais lança luz sobre a crise das relações humanas e sobre como lidar com ela
A solidão é uma das marcas definidoras do nosso tempo. Evidentemente, ela não é um problema que surgiu com a inteligência artificial em meados do século XX ou, mais recentemente, com o ChatGPT. A solidão, na verdade, é uma consequência profunda e persistente das mudanças sociais que marcaram especialmente o século XX e se intensificaram no século XXI.
O aumento da solidão foi logo percebido como uma consequência importante das mudanças aceleradas que o desenvolvimento nos últimos dois séculos produziu.
Com a urbanização acelerada, famílias extensas deram lugar a núcleos familiares menores e mais isolados; o trabalho tornou-se mais especializado e individualizado; e as comunidades tradicionais, como vilarejos ou bairros, perderam força diante da mobilidade geográfica e social crescente.
Não tardou para o fenômeno ser objeto da análise dos estudiosos. Hannah Arendt, aprofunda a análise e nota que a solidão moderna é distinta da simples ausência de companhia: trata-se da perda do mundo comum, da experiência compartilhada da realidade, o que compromete a própria vida pública.
Arendt escreve em “As Origens do Totalitarismo”:
"O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato de que a solidão, uma vez uma experiência limite sofrida nas margens da sociedade, tornou-se uma experiência cotidiana das massas".
O sociólogo Richard Sennett, em “A Corrosão do Caráter: As Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo”, observa que o isolamento moderno decorre da fragmentação das relações sociais, que deixaram de ser contínuas e estáveis, passando a ser pontuais e efêmeras.
O século Antissocial
Este é o título de um interessante ensaio publicado por Derek Thompson em janeiro deste ano na The Atlantic. O texto discute o aumento do isolamento e a diminuição da interação social nos Estados Unidos, um fenômeno que se acelerou com a pandemia e continua a se aprofundar.
O autor observa a mudança no comportamento dos consumidores, como a preferência por pedir comida por delivery em vez de jantar fora e o aumento do tempo gasto sozinho em casa.
Penso que aqui no Brasil as coisas tem se dado de maneira parecida. E costumo fazer uma observação bastante prosaica para quem convive diariamente comigo: a ascensão do delivery transformou os bairros das nossas cidades no “inferno das motos”. Quem se identifica pode dar um like nesse texto! ;)
Mas voltemos ao ensaio de Thompson. Ele sugere que a tecnologia, desde o automóvel e a televisão até os smartphones, tem desempenhado um papel significativo nesse afastamento, diminuindo a participação em atividades comunitárias e transformando espaços públicos em lugares menos convidativos.
Invenções como o automóvel, a televisão e, mais recentemente, os smartphones e a inteligência artificial, embora ofereçam conveniência e entretenimento, têm facilitado o isolamento das pessoas em suas casas e dispositivos.
A análise também aborda como essa solidão crescente afeta a felicidade, a saúde mental e a polarização política, argumentando que a conveniência que a tecnologia traz para a vida moderna, embora atraente, pode ter consequências sociais negativas a longo prazo.
Em resumo, passar mais tempo sozinho está ligado a uma redução na felicidade e na satisfação com a vida.
Parece-me que quem se interessa por observar a vida em sociedade tem notado os problemas trazidos pelo aumento da solidão. Com efeito, Thompson afirma que há uma percepção generalizada de uma "epidemia de solidão" e que a solidão é tratada como um problema de saúde pública significativo por autoridades, incluindo o cirurgião-geral dos EUA e ministros dedicados ao tema em outros países.
A tecnologia, ao facilitar e até encorajar o distanciamento físico, contribui para um "século antissocial", na medida em que permite que nós passemos mais tempo sozinhos. Isso tem consequências negativas para o bem-estar individual e a saúde da sociedade como um todo.
O papel da tecnologia
A tecnologia, como sempre, desempenha um papel ambíguo. Por um lado, ela contribuiu diretamente para muitas dessas transformações sociais, acelerando processos como a industrialização e a urbanização, que enfraqueceram os laços tradicionais de comunidade e família.
Por outro lado, a tecnologia também pode ser utilizada justamente para enfrentar o problema que ajudou a criar, oferecendo soluções para reduzir ou amenizar a solidão humana, mas — como veremos — dificilmente para resolvê-la.
Sim, a tecnologia isola. Certa vez, fiquei impressionado com um menino de cerca de 6 anos que estava com os avós em um restaurante em que eu almoçava. Os adultos, especialmente o avô, tentavam interagir com ele, mas a criança estava tão focada na tela do tablet, provavelmente assistindo algo no YouTube ou jogando, que não respondia — nem sequer olhava para o idoso. A imagem que ilustra esse artigo representa a cena que acabei de relatar.
Porém, é também verdade que a tecnologia pode unir: por meio de videochamadas, consigo falar com um amigo ou um parente que mora longe. Além disso, há diversas iniciativas ao redor do mundo têm desenvolvido robôs e sistemas de inteligência artificial (IA) para oferecer companhia a idosos em asilos, visando aliviar a solidão e promover interação social.
Mas seria a tecnologia o melhor caminho para combater a solidão?
Os companheiros de IA
Recentemente, vimos a OpenAI anunciar planos ambiciosos de transformar os "companheiros de IA" (AI companions) em um modelo de negócio consolidado.
A ideia não é exatamente nova — aplicativos como Replika, Woebot e Wysa já oferecem suporte emocional através de chatbots — mas a entrada de big techs nesse campo sinaliza um avanço significativo na exploração comercial da solidão humana.
Não surpreende, portanto, que a proposta tenha despertado críticas imediatas, levantando questões sobre ética, segurança e eficácia desses sistemas.
Mas penso que, antes disso, precisamos fazer uma pergunta mais profunda: companheiros de IA realmente são capazes de oferecer às pessoas o que elas precisam em termos de relacionamento?
Um companheiro de IA me parece ser mais um daqueles produtos ou serviços que vemos o tempo todo — que sempre foram oferecidos — e que, no fundo, sabemos que não têm o mesmo valor do que eles procuram simular: a cerveja sem o álcool, o sexo sem o amor, a aventura dos video games sem a adrenalina de realmente viver aquela situação, o TANG no lugar do suco de laranja…
Você que tem familiares ou amigos em outra cidade vai concordar comigo que a comunicação digital mantém uma conexão, mas, como Thompson nota, oferece uma "imitação pálida da interação face a face".
A ascensão dos companheiros de IA pode ser vista como uma extensão preocupante dessa tendência, oferecendo conexões simuladas que podem ser convenientes e livres de atrito, mas que potencialmente impedem o desenvolvimento de habilidades para lidar com a complexidade e as imperfeições das interações humanas reais.
Nem preciso tratar da completa ausência de presença física de um chatbot. Ficando apenas na interação por texto, trata-se de um grande ato solipsista: o chatbot é projetado para agradar o usuário, para ser útil a ele — com o risco de resultar em uma IA bajuladora —, fazendo com que tudo gire em torno do pequeno mundo de desejos e questões de quem insere os prompts.
Ora, isso jamais poderá substituir plenamente uma relação genuína, na qual o outro pode ser, de fato, um contrário.
A IA como terapeuta
Da mesma forma, o uso de IA para fins de suporte emocional gera dilemas importantes. Recentemente, debates surgiram a partir de um usuário com câncer que comparou respostas terapêuticas dos sistemas Claude e Gemini, revelando diferenças significativas em empatia e profundidade emocional.



Sobre eficácia, embora pesquisas sugiram que IAs possam de fato prover algum alívio emocional inicial, é difícil assegurar uma efetividade prolongada ou profunda.
Assim, é essencial discutir o que pode realmente oferecer uma inteligência artificial nesse cenário. Alguns usuários relatam alívio emocional e uma sensação de acolhimento real proporcionada por companheiros virtuais.
Aplicativos de IA poderiam fornecer algum suporte psicológico inicial, ajudando a mitigar a sensação imediata de desamparo. Mas também é importante deixar claro que nenhuma IA substituirá plenamente as relações humanas, nem resolverá por completo o problema da solidão.
Sistemas projetados para satisfazer as expectativas do usuário podem resultar em interações superficiais, nas quais as respostas parecem confortantes, mas não refletem um verdadeiro entendimento emocional.
Assim, cabe refletir se estamos, na verdade, buscando na tecnologia um conforto ilusório, uma solução conveniente que evita a complexidade inerente às relações humanas autênticas.

Conclusão: olhando para o que nos faz humanos
Criticar as empresas por responderem a uma demanda real, sem encarar as causas estruturais que levam à solidão, é abordar superficialmente o problema. Afinal, responder a demandas é exatamente o que empresas fazem.
Deveríamos, então, proibir completamente IAs que abordem questões emocionais ou procurem reduzir o sentimento de solidão? Isso não parece sequer viável, além de ignorar que tais tecnologias podem trazer benefícios concretos em algumas circunstâncias.
Contudo, isso não significa também permitir que empresas criem ferramentas com propósitos manipulativos. Aliás, a própria legislação, como o AI Act europeu, estabelece limites claros para evitar abusos nesse sentido.
Nem sempre é simples distinguir claramente quando uma ferramenta ultrapassa o limite entre apoio legítimo e manipulação prejudicial.
Devemos perguntar não apenas como a IA explora as vulnerabilidades humanas, mas também como ela pode ajudar, com ética e responsabilidade, a mitigar essas vulnerabilidades.
No fim das contas, é preciso aceitar a complexidade: a inteligência artificial não criou a solidão moderna, mas, como tecnologia, pode tanto contribuir para aumentá-la quanto nos ajudar a refletir sobre como lidar com ela.
Talvez, paradoxalmente, seja justamente através dessas interações com máquinas que seremos levados a revalorizar as conexões humanas reais e a trabalhar mais profundamente para reconstruí-las.
Ao interagir com sistemas artificiais, fica evidente a natureza singular e insubstituível das relações humanas genuínas, marcadas pela imprevisibilidade, pelo conflito saudável e pela riqueza do verdadeiro encontro com o outro.
Nesse sentido, a tecnologia pode servir como um espelho, destacando não apenas o que nos falta, mas também o que precisamos reconstruir na nossa vida social.
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