Tecnologia, milenarismo e regulação da IA: uma análise crítica de argumentos libertários
Prós e contras do libertarianismo, a doutrina política tradicional no Vale do Silício.
No artigo anterior, falei dos avanços extraordinários que a inteligência artificial poderia nos trazer e de como esses avanços nos levam a refletir sobre a questão da salvação da humanidade.
À primeira vista não parece, mas o mundo de hoje — da inteligência artificial e da democracia — ainda funciona a partir de um fundo religioso. Assim, concepções sobre a tecnologia e a política nos prometem a salvação.
Um outro traço religioso é o milenarismo, o fim dos tempos, o apocalipse. Ao longo dos séculos, diversos momentos na história foram interpretados como o prenúncio do fim: por exemplo, a queda do Império Romano do Ocidente e o fim do primeiro milênio da era cristã.
Mas em nossa época temos um milenarismo secularizado. Isto tem acontecido com a IA, como mostram os últimos meses, com o surgimento de declarações e alertas sobre o risco de que nos deparemos com o fim. Isto cria aquilo que Marc Andreessen chama de um pânico moral que “pega o que pode ser uma preocupação legítima e a eleva a um nível de histeria que, ironicamente, torna mais difícil confrontar preocupações realmente sérias”.
Para Andreessen, este pânico moral acaba sendo uma força motivadora da ação política, levando a leis que regulam e restringem o desenvolvimento e o uso da IA.
As pessoas que defendem estas medidas são todas defensoras altruístas do bem público? As restrições legislativas sobre a inteligência artificial são uma coisa boa?
Para o libertário Andreessen, certamente não são. Para explicar a razão disso, ele recorre a uma categorização que surgiu no âmbito da análise que o economista Bruce Yandle fez do período da Lei Seca nos Estados Unidos.
Segundo Yandle, as regulações são apoiadas tanto por grupos que autentica e ardorosamente desejam que se cumpra o propósito contido na lei quanto por grupos que lucram ao minar esse propósito. Os primeiros são chamados de “Batistas” (Baptists); os segundos são os “Contrabandistas” (Bootleggers).
“Batistas”: “são verdadeiros reformadores sociais, crentes que sentem legitimamente – profunda e emocionalmente, se não racionalmente – que novas restrições, regulamentos e leis são necessários para prevenir o desastre social. Para a proibição do álcool, esses atores muitas vezes eram literalmente cristãos devotos que sentiam que o álcool estava destruindo o tecido moral da sociedade”.
“Contrabandistas”: são os oportunistas que se preocupam apenas com o interesse próprio e “buscam lucrar financeiramente com a imposição de novas restrições, regulamentos e leis que os isolam dos concorrentes. No caso da proibição do álcool, os contrabandistas fizeram fortuna vendendo álcool ilícito para os americanos quando as vendas legítimas de álcool foram proibidas”.
Andreessen explica quem seriam os “Batistas” e os “Contrabandistas” no debate recente sobre a IA.
“Batistas”: são aqueles que realmente acreditam que a IA apresenta algum risco existencial: “coloque-os num polígrafo, eles realmente querem dizer isso”.
“Contrabandistas”: são os CEOs que usam o risco da IA para ganharem mais dinheiro com o estabelecimento de barreiras regulatórias que acabam formando um cartel de fornecedores de IA abençoados pelo governo, protegidos de novas startups e da concorrência do open source: “a versão em software de bancos grandes demais para falir”.
Quem vence essa disputa? Ora, evidentemente que são os “Contrabandistas”. Eles são os profissionais, os cínicos, enquanto os “Batistas” são os ideólogos ingênuos. Assim, o resultado de movimentos de reforma que levam à regulação é geralmente que
“os Contrabandistas conseguem o que desejam — captura regulatória, isolamento da concorrência, a formação de um cartel — e os batistas ficam se perguntando onde sua busca por melhorias sociais deu tão errado”.
Assim, na prática, os “Batistas” tão comprometidos com seus ideais acabam sendo usados pelos “Contrabandistas” manipuladores que buscam apenas benefício próprio. Para Andreessen, é isso que está acontecendo na busca pela regulamentação da IA agora.
Sobre o libertarianismo
Os argumentos de Andreessen são típicos de um libertário. Aliás, o libertarianismo é a doutrina política tradicional no Vale do Silício. Como explica Mark Coeckelbergh, “empresas do Vale do Silício, como a Google, são politicamente de esquerda (mais precisamente: libertárias de esquerda) e esperam isso de seus funcionários”.
Talvez a adesão ao libertarianismo esteja mudando entre alguns CEOs, mas isso não acontece com Andreessen, ainda fiel às ideias que formaram a mentalidade da comunidade tecnológica na qual ele se insere.
Mas o que é o libertarianismo? O tema é extenso, mas, para os propósitos deste artigo, podemos ficar com este trecho tirado da Enciclopédia Stanford de Filosofia:
“(…) os libertários tipicamente endossam algo como uma economia de livre mercado: uma ordem econômica baseada na propriedade privada e relações voluntárias de mercado entre os agentes. Os libertários geralmente veem o tipo de redistribuição coercitiva de riqueza em larga escala realizada pelos Estados de Bem-Estar contemporâneos como uma coerção injustificada. O mesmo se aplica a muitas formas de regulação econômica, incluindo leis de licenciamento. Assim como as pessoas têm fortes direitos à liberdade individual em seus interesses pessoais e sociais, argumentam os libertários, elas também têm fortes direitos à liberdade em suas relações econômicas. Assim, os direitos de liberdade de contrato e troca, liberdade profissional e propriedade privada são levados muito a sério”.
O libertarianismo tem uma forte adesão nos Estados Unidos e se baseia na obra de autores como Friedrich Hayek, Murray Rothbard e Robert Nozick.
Mas parece que o único lugar em que é realmente possível ser libertário é os EUA. Nesse aspecto, o país tem uma condição muito própria. Por outro lado, mesmo nos EUA o libertarianismo só parece durar até um certo ponto, vide as iniciativas recentes em prol da regulação de IA no país.
Isso pode nos levar a indagar se, antes de mais nada, o pressuposto dos libertários é possível. É natural que uma tecnologia surja sem quaisquer amarras e à medida que o tempo passe a necessidade acaba se impondo e ela seja de alguma forma regulada. Já vimos isto muitas vezes.
Visto por este ângulo, o argumento libertário acaba parecendo algo infantil, como uma birra de criança diante da realidade que a frustra; ou uma pessoa que não quer assumir o fardo de ser adulta.
Novas Tecnologias como blockchain e IA alimentam os sonhos dos libertários. Balaji Srinivasan, por exemplo, defende a utilização da tecnologia para criar um novo tipo de Estado, o Estado de Rede (Network State), para o qual eventualmente poderíamos transferir a nossa cidadania.
Mas tudo isso fica muito difícil quando você tem que enfrentar quem detém a força bruta da polícia, do exército, ou seja, aqueles que têm consigo o controle do Estado e do direito.
Por outro lado, as consequências do libertarianismo acabam, de fato, sendo positivas para a inovação. Sem quaisquer amarras, se inova mais facilmente e de forma mais rápida. Isto é inegavelmente uma vantagem. A crítica das eventuais consequências perversas da regulação também é um ponto interessante do argumento libertário.
Mas talvez o libertarismo sirva mesmo apenas para um país como os EUA, em que a inovação faz parte do dia a dia, do modo de ser, da cultura do país. Por isso a receita libertária para uma tecnologia como a IA soa tão insólita para nós brasileiros e para os europeus — que normalmente tomamos como modelo. Compartilhamos o direito e a incapacidade de inovação no campo da IA.
O cenário político mundial em matéria de IA pode ser resumido da seguinte maneira. Os líderes do desenvolvimento da tecnologia são Estados Unidos e China. A Europa já perdeu a corrida pela IA, está esmagada entre as duas superpotências e agora busca ser protagonista por meio da regulação da tecnologia. Curiosamente, a única chance da Europa inovar é pela regulação.
Talvez seja esta realmente a melhor postura para cenários como o brasileiro e o europeu: como não seremos os líderes na inovação, vamos pelo menos diminuir a chance dos acidentes — que podem aumentar quando você adota uma posição muito ousada. Não nos beneficiamos com os ganhos enormes da inovação, mas podemos sofrer menos com suas consequências prejudiciais.
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