Ferramentas de IA no direito: como elas podem (ou não) ajudar na interpretação jurídica? - Parte 1
O que o caso Snell v. United Specialty Insurance Company revela sobre o potencial e as limitações dos LLMs no direito
IAs como o ChatGPT e outros modelos de linguagem de grande porte poderiam ser úteis na interpretação de textos jurídicos? Se sim, de que forma?
Considerando que os LLMs (do inglês large language models) ainda são uma coisa muito recente, é compreensível que faltem reflexões e orientações sobre como os modelos de IA podem colaborar com o intérprete do direito.
Por isso achei muito interessante a leitura do caso Snell v. United Specialty Insurance Company, julgado pelo Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o 11º Circuito.
Após o acórdão do Tribunal, há um longo texto de um de seus integrantes, o juiz Kevin Newsom, com uma análise relevante sobre como grandes modelos de linguagem poderiam ser usados na interpretação de normas jurídicas.
Nesse e nos próximos dois artigos eu vou me debruçar sobre as considerações do juiz Newsom, que penso que podem ser úteis para todos os profissionais que lidam com a interpretação do direito: advogados, juízes, analistas, consultores, acadêmicos etc.1
O caso Snell v. United Specialty Insurance Company
O caso envolvia uma disputa sobre a obrigação da seguradora de defender e indenizar um segurado. A questão central girava em torno da interpretação da apólice de seguro e se a instalação de um trampolim poderia ser considerada parte das atividades cobertas.
A controvérsia jurídica que levou o juiz Newson a utilizar o ChatGPT dizia respeito à interpretação do termo landscaping (paisagismo2), que aparecia na apólice do seguro contratado por James Snell.
Snell, dono da empresa Outdoor Expressions, foi contratado para instalar um trampolim no nível do solo no quintal de um cliente. Posteriormente, uma criança se feriu no trampolim, e os pais processaram os proprietários da casa, Snell e o fabricante do equipamento.
A seguradora se negou a ingressar na defesa de Snell, bem como a realizar a cobertura do sinistro sob a alegação de que a instalação do trampolim não estava coberta pela apólice, pois não se enquadrava nas atividades de landscaping, que era a única atividade segurada.
Snell argumentou que seu trabalho envolvia paisagismo e que a seguradora deveria cobrir os custos da defesa e eventual indenização.
A decisão da Corte foi de que o próprio Snell, ao preencher sua aplicação para a apólice, negou que realizava trabalhos com equipamentos recreativos ou de playground. Isso levou à conclusão de que a instalação do trampolim não estava coberta.
Portanto, a seguradora não tinha qualquer obrigação, pois a atividade realizada estava fora do escopo da cobertura.
A questão sobre o significado da palavra landscaping
Uma discussão interessante no caso era se a instalação de um trampolim embutido no solo, juntamente com um muro de contenção e uma borda decorativa de madeira, poderia ser enquadrada no entendimento comum do termo landscaping, que constava na apólice de seguro.
Como a apólice não definia o que era landscaping, o tribunal afirmou que a determinação da cobertura dependia de saber se o trabalho de Snell relacionado ao trampolim se encaixava no "significado comum3 e cotidiano da palavra".
O Tribunal não precisou se aprofundar nessa questão porque havia uma exclusão clara baseada na própria aplicação de Snell para o seguro. Ele havia negado que realizava esse tipo de trabalho, e isso foi suficiente para que o Tribunal decidisse que a seguradora não tinha qualquer obrigação de defesa ou indenização.
Mas a questão do significado do termo landscaping intrigou o juiz Newson e acabou levando-o a recorrer à ajuda de uma ferramenta de IA.
Uma IA ajudando a determinar o significado
O juiz Newson relata como passou “horas e horas (e mais horas)” se debruçando sobre a questão de saber “se o projeto de instalação do trampolim poderia ser qualificado como landscaping, conforme o significado comum desse termo”.
Então, no meio dessa jornada exaustiva, ele pensou: é absurdo imaginar que o ChatGPT poderia ajudar a esclarecer o significado dessa palavra?
Em busca do “significado comum” da palavra landscaping, Newson relata as definições de dicionário que ele analisou.
"melhorar a aparência de (uma área de terra, uma rodovia etc.), plantando árvores, arbustos ou grama, ou alterando os contornos do terreno";
"qualquer atividade que modifique as características visíveis de uma área de terra";
"modificar ou ornamentar (uma paisagem natural) alterando a cobertura vegetal";
"melhorar a aparência estética de (uma área) alterando seus contornos, adicionando elementos ornamentais ou plantando árvores e arbustos".
Depois de consultar as definições, algumas dúvidas permaneciam:
“Uma melhoria precisa ser natural para ser considerada landscaping? Talvez, mas isso presumivelmente excluiria calçadas e luminárias decorativas, ambas as quais, intuitivamente, pareciam (pelo menos para mim) se qualificar”.
“Talvez o trabalho de landscaping precise ser feito por razões estéticas? No entanto, isso excluiria, por exemplo, um projeto para nivelar um quintal, afastando a drenagem da fundação de uma casa para evitar inundações no porão”.
Depois de ver as fotos do trabalho de Snell, as dúvidas continuaram.


Foi aí que Newson decidiu perguntar ao ChatGPT: “qual é o o significado comum de landscaping?”. A resposta:
"Landscaping" refere-se ao processo de alterar as características visíveis de uma área de terreno, geralmente um quintal, jardim ou espaço ao ar livre, para fins estéticos ou práticos. Isso pode incluir atividades como plantar árvores, arbustos, flores ou grama, bem como instalar caminhos, cercas, elementos aquáticos e outros componentes para melhorar a aparência e a funcionalidade do espaço externo.
A definição estava alinhada com o que o juiz estava pensando. Mas para — atenção — não incorrer em um viés de confirmação, ele resolveu fazer mais uma pergunta: “a instalação de um trampolim no solo é landscaping?” A resposta:
“Sim, a instalação de um trampolim embutido no solo pode ser considerada parte do paisagismo. O paisagismo envolve a alteração das características visíveis de uma área externa para fins estéticos ou práticos, e a adição de um trampolim embutido no solo modificaria tanto a aparência quanto a funcionalidade do espaço. Trata-se de uma mudança deliberada no ambiente externo, frequentemente com o objetivo de melhorar a paisagem geral e a usabilidade da área”.
Conclusão
Mas, se segundo o ChatGPT, o trampolim em questão poderia ser considerado paisagismo, por que então o Tribunal considerou que a apólice não dava cobertura?
Como já vimos, o fato de Snell ter explicitamente excluído o trabalho de landscaping das atividades que ele realizava ao preencher a solicitação do seguro foi suficiente para excluir a obrigação da companhia.
Mas embora no caso em espécie a disputa em torno do significado da palavra tenha sido contornada, a análise do juiz Newsom é de grande utilidade para pensar o problema da interpretação no direito.
Com frequência, o intérprete é chamado a delimitar o sentido de uma palavra ou uma expressão que se encontra na norma. Muitas vezes, no entanto, isso não é tão simples de realizar, pois, como sabemos, existe uma pluralidade de sentidos possíveis que precisam ser enquadrados no caso concreto que se está a analisar.
Diante desse problema presente desde sempre no direito, o caso Snell v. United Specialty Insurance Company pode apontar para as IAs como uma nova ferramenta a ser utilizada pelo intérprete em questões jurídicas.
Nos próximos artigos, seguirei discutindo essa questão, abordando os pontos fortes e os pontos fracos do uso de LLMs na interpretação e analisando diretrizes sobre o melhor uso dos LLMs na interpretação jurídica.
Um esclarecimento sobre a corrente de pensamento jurídico a qual o juiz Newson pertence. Ele adota o “textualismo” (textualism doctrine), uma doutrina bastante popular no direito dos EUA frequentemente associada a juízes como Antonin Scalia.
Segundo o textualismo, a regra mais fundamental da interpretação é a de que “na ausência de uma indicação clara de que possuem um sentido técnico ou especializado, as palavras e expressões usadas em instrumentos jurídicos escritos "devem ser compreendidas em seus significados comuns e cotidianos."
Essa "regra do significado comum (ordinary meaning)" deve guiar nossa leitura não apenas de "constituições, leis [e] regulamentos", mas também, conforme relevante aqui, de "instrumentos privados".
— Antonin Scalia & Bryan A. Garner, Reading Law: The Interpretation of Legal Texts 69 (2012).
Assim, considero uma verdade incontestável que, na ausência de uma indicação clara de que um significado idiossincrático ou especializado foi pretendido,
"[a]s palavras devem ser compreendidas em seus significados comuns e cotidianos."
— Id.; ver também, por exemplo, Shiloh Christian Ctr. v. Aspen Specialty Ins. Co., 65 F.4th 623, 629–30 (11th Cir. 2023) (Newsom, J.).
Embora o textualismo seja pouquíssimo conhecido e adotado no Brasil, considero que as reflexões do juiz Newson, ainda que pertencentes a uma corrente teórica que não é a dominante em nosso país, traz vários elementos importantes para pensarmos o papel das IAs na interpretação do direito.
Afinal de contas, interpretar o direito é lidar com o problema do significado das palavras contidas na norma. Esse problema existe em qualquer que seja a corrente sobre a interpretação do direito.
Traduzir por paisagismo pode ser insuficiente dependendo do contexto já que, além do termo em inglês ter esse viés mais artístico e arquitetônico (como normalmente se entende no Brasil), ele também pode abranger atividades como poda de árvores, manutenção de canteiros, terraplanagem ou construção de muros de contenção.
A tradução é minha. Considero uma opção melhor do que a tradução mais literal ‘significado ordinário’.
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